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A VIDA PÓS-ESCRAVIDÃO - Trabalhadores paraibanos resgatados em 2014 de fazendas do DF estão livres e desempregados

Do recrutamento à estadia em condições subumanas, trabalhadores rurais contam como é sobreviver do trabalho manual nos cafezais e canaviais brasileiros.

Geralmente com pouco estudo, muito trabalho, comida escassa e ameaças constantes, eles não denunciam os fazendeiros porque temem não dispor de outras oportunidades de sobrevivência. Esta é uma realidade vivenciada por famílias inteiras na cidade de Nova Floresta, Curimataú paraibano. Em 2014, 33 homens foram resgatados do trabalho escravo em uma fazenda na zona rural de Planaltina-DF. Quase dois anos após, medo e desemprego ainda fazem parte da vida desses agricultores.

Segundo o agricultor Hamilton Diniz dos Santos, 49 anos, nessas fazendas é comum a presença de crianças e idosos. Os abusos mais recorrentes são o trabalho forçado, a servidão por dívidas, as jornadas exaustivas e as condições degradantes.

Hamilton foi quem denunciou ao Ministério Público do Trabalho que estava sendo vítima de maus-tratos e ameaças. “As ameaças não eram de morte, mas de não nos pagar, de nos mandar embora sem nada, fora as humilhações e condições precárias. Além disso, quando a gente saía de lá, o que era muito difícil, era seguido pelos capangas do gerente. Logo percebi que ele não tinha intenção de remunerar a gente de acordo com o que produzíamos, como combinado”, explicou.

O agricultor é casado e tem quatro filhas. Analfabeto, ele quer ver as filhas formadas e longe do trabalho na roça. Apesar do susto da última viagem, ainda este mês ele pretende voltar às colheitas de outros Estados. “Aqui tem a cultura de se trabalhar com safra. Ninguém vai deixar. Os resgatados pelo MPT continuam morando aqui. Muitos desempregados. A gente não tem muita opção, tem que se sujeitar aos senhores da terra”, explicou.

“A gente passava muita fome. A comida era ruim e pouca. De manhã, um pão com café, se comesse dois, outro ficava sem. No almoço, arroz, feijão e só o caldo de carne. Quem reclamasse eles deixavam sem almoço. Diziam que nordestino era acostumado a passar fome”, afirmou o agricultor Hamilton Diniz dos Santos, 49 anos.

 

 

Envenenados na fazenda

Risco à saúde. Escravizados no Distrito Federal

contam que comiam no meio da plantação, enquanto recebiam baforadas de agrotóxicos

 

Os trabalhadores rurais de Nova Floresta explicam que o costume de trabalhar nas colheitas de cana de açúcar e café é repassado de pai para filho.

Cinco dos 33 trabalhadores recrutados pelo ‘gato’ que os levou de Nova Floresta até Planaltina, no Distrito Federal, contam que o problema mais preocupante era a quantidade de agrotóxico no local onde trabalhavam. “Com comida ruim e muito trabalho a gente já era acostumado, mas lá tinha muito veneno sendo baforado ao mesmo tempo em que a gente trabalhava. No cafezal tem muito bicho, e a gente comia lá mesmo. Graças a Deus ninguém ficou doente”, ressaltou Hamilton dos Santos.

Ele contou ainda que as primeiras refeições na Fazenda Área Isolada Monjolo, na zona rural de Planaltina, foram boas. “No começo a gente até se enganou. Porque embora o alojamento e os banheiros não prestassem, a comida era boa. Mas foi só no começo. Só lá eles nos disseram que não iam assinar carteira e depois que não ia pagar pela produção inteira”, pontuou.

Carlos Roberto Rodrigues dos Santos, 45 anos, era um dos safristas que mais colhiam na labuta diária: 30 sacas, das 5h às 17h. As mãos calejadas comprovam o esforço físico. “A mão dói no começo, mas depois a pessoa nem sente. Sou acostumado a sofrer e tenho sete filhos pra alimentar. Não dá pra fazer corpo mole. Agora estou um pouco preocupado, porque desde essa denúncia não consegui mais trabalho. Os ‘gatos’ não querem nos levar pra Brasília. Por esse lado, foi ruim”.

Desde menino

Nova Floresta tem mais de 10 mil habitantes e lá é o costume trabalhar nas colheitas. Hamilton dos Santos, hoje com 49 anos, relembra que sua primeira viagem foi aos 11 anos de idade para colheita de cana-de-açúcar, na Bahia.

“Eu era uma criança, mas já trabalhava na roça ajudando meu pai. Lembro que viajamos de pau de arara. A viagem foi longa e cansativa, passamos fome e sede. E lá o trabalho era pesado para uma criança. Mas depois desse dia eu nunca mais parei. Não teve um só ano desde 1978 que eu não tenha trabalhado nas safras de fazendas Brasil afora”, afirmou.

Para Jerônimo Mariano Avelino, 30, que cresceu vendo o pai e seus irmãos mais velhos no trabalho clandestino nas fazendas das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, laborar na roça não é um emprego que ele goste, mas talvez seja a única opção.

“Eu nunca tinha trabalhado nessas fazendas. Mas meu pai tem mais de 70 anos e ainda corre trecho. Esse trabalho em Planaltina foi a primeira viagem que fiz. Não queria mais voltar, mas já se passaram quase dois anos e ainda não consegui trabalho. Pra quem não tem estudo como a gente, não existe outra opção. Os ‘gatos’ vêm, fazem as propostas deles, e feliz de quem conseguir ser escolhido. É melhor do que morrer de fome”, disse Jerônimo.

“De início disseram que ganharíamos R$ 7 por cada saca de café que fosse colhida. Com 10 dias de serviço, o gerente começou a dizer que só pagaria metade. Porque tinha gente que colhia até 30 sacas por dia, o que já dava mais de R$ 2 mil durante esse tempo. A gente trabalhava de 5h às 17h, direto, só parava pra comer o pouco que eles ofereciam. De noite já tava todo mundo morto de cansado e se dormia bem cedo. Fomos pra passar 3 meses, mas só ficamos 19 dias”, contou o agricultor Hamilton Diniz dos Santos.

“O moderno conceito de trabalho escravo consiste simplesmente na retirada da pessoa de algo que lhe é intrínseco da condição humana, o atributo da dignidade, ou seja, sem dignidade o homem se coisifica e perde a condição humana”, afirmou Paulo Germano Costa de Arruda, procurador-chefe do MPT-PB.

 

‘Gatos’ em ação

Recrutadores. Eles aliciam trabalhadores desempregados para trabalho escravo no País

 

As dívidas geradas são impossíveis de serem quitadas e são ‘pagas’ com trabalho árduo e degradante, em condições subumanas de higiene, segurança e saúde no trabalho.

No atual sistema escravocrata das colheitas se encontram figuras como os ‘gatos’, que aliciam os trabalhadores; os que disponibilizam locais para facilitar o aliciamento, e aqueles que se utilizam do trabalho escravo (donos ou grileiros da terra) e que mantêm estabelecimentos onde são vendidos os materiais para o trabalho, cujos preços são elevadíssimos.

Assim, a miséria é o principal meio pelo qual as pessoas se submetem a esse tipo de serviço. “Os gatos são gente boa, precisamos deles para sobreviver. O trabalho clandestino garante mais dinheiro, só que tem mais riscos. Quem é rodado no trecho imagina o que vai encontrar e os perigos que estão sujeitos. Mas a gente não tem estudo, tem que se arriscar mesmo”, disse José Nilson, um dos ex-escravos de Nova Floresta.

Nilson é casado há 6 anos e pai de dois filhos. Com um terceiro a caminho, ele conta que tem medo de voltar “para o mundo”, mas que não tem estudo e o serviço de pedreiro não dá lucro. Desde 2014, depois que ele voltou do DF, não conseguiu emprego e diz que, apesar do sossego garantido pela indenização, já é hora de voltar a trabalhar com colheita.

 

Falta fiscalização

De acordo com o procurador-chefe do MPT-PB, Paulo Germano Costa de Arruda, não há fiscais em quantidade suficiente para dar conta do trabalho escravo existente no país. “Nos últimos anos, ao contrário do que seria de se esperar de um governo dos trabalhadores, o Ministério do Trabalho foi sucateado. Não há servidores, não há diárias, o que há é um desmonte da fiscalização do trabalho, de que se aproveita os maus empregadores que utilizam mão de obra escrava”, disse.

O procurador disse ainda que, além da fiscalização insuficiente, outro problema é o fato dos próprios trabalhadores não optarem pela denúncia.

“Eles vão pela lógica da miséria, ou seja, melhor um trabalho degradante a não ter nenhum”, concluiu Paulo Germano. O MPT-PB afirmou que as denúncias são frequentemente anônimas.

 

Chega sorrateiramente

“O gato é o intermediário entre o fazendeiro e os

trabalhadores, normalmente afastados milhares de

quilômetros, em diferentes regiões do país. Age mesmo

como um gato: chega sorrateiramente e, de mansinho,

se vale de mentiras e falsas promessas para ganhar a

confiança do trabalhador. Ele chega em pequenas cidades

e povoados carentes de tudo e sem perspectivas, faz

promessas, adianta dinheiro e contrata trabalhadores para

o serviço em outras regiões. Chegando lá, o trabalhador

constata que as promessas não se cumprem. E ele, longe

de casa, muitas vezes em situação degradante e com dívida

acumulada, não tem como voltar.”

Paulo Germano Costa de Arruda, procurador-chefe do MPT-PB

 

Números do MPT

4.098 trabalhadores

foram resgatados entre

2013 e 2015, sendo 3.792

homens, no País.

522 trabalhadores eram

analfabetos.

52 trabalhadores

resgatados eram

paraibanos.

 

 

DENUNCIE

(83) 3612-3100

 

Sindicato

Segundo Francisco de Assis Macedo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nova Floresta, é importante que eles saibam denunciar quando necessário. “Não digo que eles deixem de fazer o que sabem, mas que pelo menos se documentem. Nos avisem quando forem viajar”, explicou.

História

Segundo historiadores, a escravidão no Brasil ocorreu no período Colonial e Império, sendo a população local (indígenas) os primeiros escravizados. Mais tarde, entre os séculos XVI e XIX, os nativos da África passaram a ser uma grande fonte de renda para o tráfico e para a própria agricultura, como trabalhadores pobres e geralmente analfabetos continuam sendo também nos dias atuais.

Ciclo de escravidão

“O que se repete é o cerceamento de liberdade, o controle do ir e vir, e possivelmente condições de impossibilidade de retorno ao lar, configurada em nossos dias pelas altas dívidas que os trabalhadores acabam contraindo para se manter onde estão. É um ciclo de subordinação”. (Carlos Adriano, professor de História da UEPB).

 

Por Fernanda Figueirêdo

Jornal Correio da Paraíba

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